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Humberto Moureira

Papo com o diretor do longa Querência, Helvécio Marins Jr., exibido na mostra Forum no Berlinale

Querência, de Helvécio Marins Jr., exibido na mostra Forum, no festival de Cinema de Berlim, fez no último mês de fevereiro e conversamos com o diretor em Berlim. Com sotaque mineiro não tão aparente, mas com sorriso largo, de antemão, o cineasta soltou que “não tem papas na língua e estava cansado de responder sempre as mesmas perguntas”. A estréia do longa do brasileiro, que mora em Portugal desde novembro do ano passado, aconteceu no IMAX, no Sony Center, na capital alemã. Na estreia ele chegou vestindo uma camiseta com a frase „Lula Livre“. Marins tem um em sua filmografia Girimunho (2011), dirigido em parceria com Clarissa Campolina e os curta-metragens Fernando Que Um Pássaro do Mar (2013), dirigido também por Felipe Bragança e Nem Marcha Nem Chouta (2009). Nosso bate-papo aconteceu no café do Cinemaxx, em Berlim, em um tempo frio, regada à dois cafezinhos, gestos e risadas.


Me conta sobre a estréia de Querência ontem, no IMAX, aqui em Berlim?

Berlim é muito generoso com filmes brasileiros. Esse festival é grande demais. O Brasil não tem esse nível todo para ter onze filmes aqui, não. Eu sou muito crítico. Ainda falta muito para chegar em algum lugar. Eu me mudei para Portugal em novembro. A situação no Brasil está difícil. Ontem eu fui com camiseta com o slogan “Lula Livre”, mas tive que ser breve para não ser chato com o pessoal do festival por causa do tempo. É impossível a gente não fale sobre isso hoje. Para mim, a prisão desse cara não tem nada de mais sórdido e kafkaniano. Eu respeito a opinião de todo mundo, mas, cara… Eu viajava nos anos Lula. Eu lembro quando eu comecei a viajar com meu passaporte verdinho e as pessoas olhavam meio atravessado.


Como você traz a política para os seus filmes?

Meu cinema tem uma questão política, mas não é uma questão política direta. É muito indireta. Acho que ela está no Querência, mas é bastante visível no Girimunho. Porque eu falo de pessoas que não tem voz. Eu falo de um Brasil que é invisível para os brasileiros. Quando surgiu o Girimunho no Brasil foi graças a um ser iluminado chamado Eduardo Coutinho. Para o Coutinho, o Girimunho não é um filme, é um milagre. Por isso o Walter Salles começou a me produzir. O Coutinho foi contar para ele e para João [Moreira Salles] o que eu estava fazendo. É uma questão para todo artista brasileiro – é difícil pegar e fazer. Eu toco naquelas questões políticas, mas com muita sutileza. O Querência tem um exemplo prático e muito bom. Todos os meus filmes partem de um universo documental. Digamos que 70% é verdade e 30% eu invento. Tem que fazer começo, meio e fim e a estrutura toda.


O peões de rodeios me lembraram muito os rappers que são marginalizados ou esquecidos no cinema. Esses personagens…

Sim. São personagens invisíveis. Eu me prejudico por isso, sabia? Não gosto de ficar comparando, mas por exemplo, todo filmes é importante, mas os meus são sempre mais esquecidos. Nunca ganho muito destaque porque eu não tenho muito a mídia para falar, entende? Se tem nessa mostra Forum, um documentário sobre o HIV… Isso é mais interessante para Berlim, apesar deles gostarem do que eu faço. Não tenho problema com críticas. Podem falar mal à vontade, mas tem que falar mal direito. Tem que conhecer o que está falando.


Como foi a preparação do elenco?

Como eu escrevi tudo que falavam, parecia muito „Helvécio“, muito intelectualizado. Eu só trabalho com não-atores. Eu já dei muitas aula sobre isso. Eu levo muito crédito por dirigir ator não profissional. Tenho um milhão de estratégias para prepará-los. No cinema brasileiro tem um função que é a do preparador de elenco. Eu nunca entendi isso. Quem prepara o ator sou eu – o diretor. Parto de um principio de amizade. Existe um processo mutuo de confiança e intimidade. Nunca trabalho com uma grande equipe. É câmera, som e eu. Às vezes, nem eu. Se tiver que ir para debaixo da mesa, eu vou. Assim, eles não olham para mim, não buscam aprovação. Já no Girimunho foi diferente. Elas eram duas senhoras de 80 anos e não olhavam muito para câmera. Embora seja uma ficção, tem uma pegada documental. Faço plano, contra-plano. Ajuda a ficar mais convincente para espectador de que aquilo está acontecendo mesmo. Por tem roteiro.


Como é seu processo para escrever um roteiro?

Eu demoro muito. O Girimunho foram 8 anos. Querência já tinha 7 anos de preparação, mas era um outro filme, com outro protagonista. Eu quase desisti desse projeto. Filmei e montei esse filme em 6 meses. Eu quase devolvi o dinheiro. Eu tenho muitas ideias na cabeça – precisa escrever uma nova história, pois decidi mudar o protagonista. Então, aconteceu um assalto onde o Marcelo trabalhava. Surgiu uma nova ideia. Ele não conseguia mais dormir na casa da dele, pois estava apavorado. Qualquer ruído que ele ouvisse o amedrontava. Um dia ele me acordou às 2h00. Bateu um vento, que jogou as coisas no chão e ele achou que estava sendo assaltado de novo. Foi um trauma para ele.


Como você foi trazer esse trauma e a toda a situação para frente da câmera?

Eu faço muita piada, muito humor e acabo desconstruindo a situação… Eu coloco um medinho neles por causa do teste de câmera. Finjo um certo glamour para eles só para que eles fiquem com um pouquinho de medo, mas é tudo mentira. Tem um diretor que me inspira muito que é o Abbas Kiarostami, mas ele faz a coisas que eu não faço. Eu os deixo muito espontâneos e coloco a câmera na mesa e, às vezes, eles nem percebem. Eu faço um contra-plano, eu puxo a conversa, eu provoco, peço para eles me imitarem. Eu nunca corto. É tudo muito íntimo.

Querência, de Helvécio Marins Jr.

Como você descobre os seus personagens?

Eu amo. Eu ando. A região do São Francisco e o norte de Minas é notadamente a minha área. Quem conhece um pouquinho dali, me chama para dar uma ajuda. A Netflix, por exemplo, quer fazer um piloto de série para o Grande Sertão Veredas, mas essa é outra conversa. risos… Eu vou andando.


Como foi o processo de roteiro para Querência?

Eu não gosto muito de escrever de manhã, mas é muito livre. Eu escrevo umas horinhas de manhã, outras à tarde, depois percebo que estou ficando cansado e que preciso dormir. Às vezes, escrevo a noite e ouço os passarinho cantando – É sinal que os passarinhos estão me vaiando, digo sempre. Então, preciso descansar.


A filmagem…

Filmagem é muito cansativa. Quando as pessoas estão comendo ou indo embora, ainda preciso resolver algumas coisas. Tem coisas que não funcionam, mas que eu uso no roteiro e que ajudam a equipe, ajudam os atores a se embebedarem nisso e traspassar coração deles. É tão prazeiroso, eu poderia fazer isso o tempo todo. Mas, também é verdade que eu cansei um pouco das pessoas na indústria do cinema.


O que te motivou, então, para esse novo filme?

Eu adoro essas pessoas que são personagens no Querência. Eu tenho muita vontade de falar dessas pessoas que tudo mundo ignora, que ninguém fala…


Que são invisíveis…

É. Totalmente invisíveis. De ninguém saber que tais pessoas existem. Isso me dói de alguma forma, mas eu entendo. Não culpo de jeito nenhum o cara que está em São Paulo, no Rio, na vidinha dele. Cada um tem uma história. Eu nunca sonhei em ser cineasta – me formei em direito. Também não queira fazer direito. Fiz direito por livre e espontânea pressão de uma família de classe média de Belo Horizonte, . Fiz vestibular no final dos anos 80 e não tinha esses milhares de cursos que tem hoje. Era engenharia, direito… Não tinha muita coisa. Eu fiz música na federal [UFMG]. Eu fui até a última audição, mas não passei – era muito difícil. Eu gostava muito de cineclube, eu escrevia . Eu tinha uma cinefilia. Gostava de uma vez ou outra fazer workshops. Em um desses, a gente tinha que fazer um curta de 15 minutos. Todo mundo brigou para ser diretor. Eu era o único que não queria dirigir. O professor convenceu uns três de que todos não podiam ser diretores durante o curso, precisávamos decidir. Então, teve uma votação e sete votaram em mim. Eu não sabia se queria. Porque se você vai fazer alguma coisa, é preciso fazer isso bem.


O que é preciso para ser um bom diretor? O que precisa? Sorte! risos… Eu tive muita sorte. Eu não tive padrinho. Eu não tinha artista na família. Acabei aceitando dirigir o curta e não conhecia ninguém. Acho que cinema hoje é muito competitivo e tem muito filme ruim. Não que eu me ache bom, mas no dia em que eu achar que eu estou fazendo filme na média… Não estou dizendo que eu inventei a roda, não! A dramaturgia pra mim acabou lá Grécia Antiga, com o Aristóteles.


Existe uma distância entre o roteiro imaginado e a filmagem com os atores. Como você sabe que o filme tem o resultado que você quer? E que o filme não é mediano?

Já na hora de filmar. Na verdade, antes de filmar… como o elenco está comigo. É difícil explicar isso. Eu tenho uma coisa espiritual muito forte. O que é isso? Não sei. Meu último truque não é pedir par eles me imitaram, é ir atrás de uma parede e meditar. Não sei explicar, mas acaba dando certo. Eu não me acho ótimo. Eu trabalho. Uma crítica é sobre cineasta que não sabe filmar. Tem cineasta que não sabe pegar em uma câmera – isso é básico! Acho bom a nova geração ter cortado um pouco a coisa do glamour, mas sabe a aquela paixão, a coisa do cinema, de fazer transformar… Da véspera até a filmagem parece que tem uma magia, que bate um pozinho que vai tomando conta do ambiente. Parece que tem uma aura que vai tomando conta do ambiente… eu não explicar, cara! risos… Na hora, em que vejo eles atuando eu penso: Minha Nossa Senhora, o que é isso? risos…


Você havia citado o Abbas. Fala sobre o exemplo…

Ah, é verdade! risos… Não estou criticando. É meu ídolo! Eu não lembro em qual filme, mas o menino precisava chorar. [Marins pede uma folha do meu bloco de notas para dar um exemplo. Eu concedo] Abbas pediu para fazer uma foto com o pai e com a mãe, em um cidadezinha do Irã. Fizeram, colocaram num porta-retrato, deu presente para ele e deixou o menino ficar uma semana com a foto. No dia da filmagem, pediu para o assistente pegar a foto lá quarto dele. O set é o seguinte: A foto na mão do Abbas e a câmera na cara do menino, imagina? [O diretor rasga a folha em pedacinhos, ilustrando o exemplo] O menino desabou de chorar. Eu não sei fazer isso, entendeu? Meu coração é muito mole, mas eu admiro.É aí, que entra a personalidade do diretor. Eu acho isso muito forte, mas eu não faço, não.


Se você tivesse um quadro que pudesse escrever algo que todo mundo pudesse ler. Um recado para o mundo. O que você escreveria?

[pausa] Não sei se seria para o mundo, mas para o Brasil, talvez. [pausa] Pensando no Marcelo, do Querência… Ele é um exemplo de caráter, de bondade, de honestidade e, acho que o brasileiro perdeu isso. Não sei se a gente nunca teve, mas talvez, tenhamos tido mais do que a gente tem hoje. Fomos transformados no país do ódio. Há dez anos atrás no Brasil, tínhamos alguma voz, as pessoas escutavam.



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